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Fronteiras Líquidas

Não sei ao certo a sua idade. Mas talvez você saiba (ou lembre) que há alguns anos a datilografia era uma profissão. Quem tivesse um diploma de datilógrafo teria mais chances no mercado. Hoje essa profissão não existe mais. Tornou-se uma habilidade transversal, que todos nós devemos desenvolver. Hoje somos todos datilógrafos. 

Há alguns anos o manuseio de câmeras, microfones e equipamento audiovisual era restrito a produtoras especializadas. Mais recentemente os equipamentos se tornaram acessíveis e, acoplados ao desenvolvimento da grande rede, permitiram o surgimento de uma nova profissão: YouTuber. Um ofício, talvez, pouco compreendido por quem conheceu de perto a datilografia. Mas uma atividade que ascendeu e criou um novo mercado massivo. E rapidamente também se tornou uma habilidade transversal. Hoje, por conta do teletrabalho, da educação remota ou da proliferação do marketing digital, todos devemos (ou tentamos ser) um pouco YouTubers. 

É possível também que você perceba que nos últimos anos as empresas estão se transformando de forma significativa. Desta vez a tecnologia, antes um nicho específico, se torna habilidade transversal e fundamental para pequenas, médias e grandes organizações. Como efeitos colaterais, é possível notar uma clara diluição das tradicionais arenas de negócios. Novas startups inauguram novos segmentos, antigas organizações flertam com novos mercados. Casamentos inesperados são celebrados entre atores aparentemente distantes e desconexos.

Profissões desaparecem e se tornam habilidades. Os segmentos se mesclam e empresas se fundem e remodelam.

Muitas fronteiras estão sendo cruzadas. 

Algumas estão se desfazendo. 

E tantas outras estão sendo criadas exatamente agora.

Passado x Futuro:
Steve Ballmer e a Pós-Categorização

O entendimento das fronteiras entre o presente e o futuro são exemplos de desafios constantes no mercado. Principalmente por conta da forte e acelerada influência do desenvolvimento tecnológico e de seus efeitos colaterais nos hábitos de consumo.

Na verdade, estamos habituados a classificar o que nos rodeia em definições já conhecidas. Rotulamos o mundo com etiquetas, muitas vezes imprecisas ou até mesmo obsoletas. Aplicamos o que é chamado por Bob Johansen de uma ‘abordagem categórica’. Ou seja, categorizamos o novo segundo velhos conceitos. 

Diante deste desafio, Bob, que é membro ilustre do Instituto para o Futuro do Vale do Silício e consultor que ajuda grandes organizações a se prepararem para o futuro, sugere deixar de lado as categorias do passado. Perante as novidades que nos atropelam, Johansen preconiza ignorar rótulos e destruir antigas caixinhas. Sugere eliminar classificações limitantes para conseguir enxergar com clareza um gradiente amplo de novas perspectivas.

Antes de categorizar algum fato, um novo produto, um fenômeno social ou mercadológico, recomenda estar aberto a novas possibilidades. Antes de rotular, sugere dar uma chance para um entendimento mais claro do contexto, permitindo o que chama de ‘pós-categorização’.

Algo que, apesar de simples, pode surpreender as mentes mais preparadas do mercado.

Tomemos como exemplo a memorável entrevista concedida por Steve Ballmer, CEO da Microsoft, em 2007. Na ocasião o mercado era dominado por padrões muito bem estabelecidos. O telefone Blackberry era referência entre executivos e o Zune acabara de ser lançado como promessa entre os tocadores de MP3. 

Diante do lançamento do iPhone (que embaralhou o mercado), Ballmer foi questionado em uma entrevista. O repórter perguntou como a Microsoft, em especial o Zune, lidaria com o novo concorrente. Com um sorriso nos lábios, Ballmer teceu argumentos contundentes sobre o preço elevado do novo produto Apple, que ele chamou ‘categoricamente’ de telefone. Foi irônico quanto a inexistência de um teclado físico e destilou suas características provocações. Deixou a questão em aberto, mostrando um interesse debochado em saber até onde o iPhone – o telefone mais caro do mundo – poderia chegar.

O desenrolar da história você conhece. O Zune desapareceu e o iPhone se estabeleceu no mercado. O novo produto Apple não ocupou exatamente a ‘categoria’ de telefones. Na verdade, o iPhone passou a ocupar um espaço muito mais próximo da classe dos computadores e acabou por consolidar uma nova categoria (ou pós-categoria): a dos smartphones.

A despeito de suas incontestáveis competências para liderar uma das maiores organizações da história da tecnologia, o pecado de Ballmer talvez tenha sido o de categorizar uma inovação com suas referências do passado. Etiquetou o iPhone com o rótulo de um telefone. Bob Johansen certamente o aconselharia a esquecer as velhas caixinhas e entender os novos arranjos com uma visão mais ampla sobre novas possibilidades. Recomendaria pós-categorizar aquele gadget, ainda misterioso, que não tinha uma categoria definida.

Conexões físicas x Conexões mentais:
Implantes cerebrais estão cada vez mais próximos

Para exercitar o olhar sobre as velhas e novas fronteiras não é preciso ir longe. Mais uma vez as respostas podem estar mais próximas do que você imagina.

As recentes novidades vindas da Neuralink de Elon Musk representaram um importante avanço no alargamento dos limites da mente. 

Um macaco chamado Pager surpreendeu o mundo quando, a partir de um implante craniano do tamanho de uma moeda, conseguiu realizar comandos mentais em um computador. 

Em um vídeo que circulou pelas redes sociais, é possível ver o macaco jogando videogame em troca de recompensas. A princípio as ações se dão com o uso de um joystick. Mas na sequência, os contatos físicos são desligados e incrivelmente o controle se mantém, através da conexão das ondas cerebrais do macaco com o equipamento.

De forma consistente, passo a passo, os experimentos de Musk avançam. Segundo suas declarações no Twitter, as próximas versões do implante serão capazes de conduzir sinais a partir de um cérebro humano. Permitirá, por exemplo, que paraplégicos andem novamente. Ou que alguém com paralisia use, com a mente, um smartphone mais rapidamente do que um usuário o faria com os polegares.

Real x Virtual:
O metaverso da Epic Game

Uma proeza que já foi tentada algumas vezes, através de iniciativas como Active World (lançado em 1995) e Second Life (lançado em 2003), o desenvolvimento de um universo digital paralelo, está prestes a se tornar realidade.

Pelo menos é o que promete a Epic Games, criadora do Fortnite, um dos games mais populares da atualidade.

Não chegam a ser novidades as cifras milionárias que circulam no mercado dos jogos digitais. Mas o anúncio recente de que a Epic Games trouxe um sentimento diferente. A empresa acaba de receber US$1 bilhão em investimento para a construção de um novo ambiente virtual, chamado até o momento de “metaverso”.

O universo digital será uma réplica do mundo real, com upgrades significativos. Um ponto de encontro para indivíduos e organizações, que promete revolucionar o mercado. O CEO Tim Sweeney declarou que os anunciantes poderão ter sua presença de marca no metaverso, não através de meras propagandas. Mas através de experiências imersivas. Indivíduos poderão sentir novas sensações e, segundo ele, experimentar interações muitíssimo mais interessantes.

Em se tratando de Epic Games, o desafio parece plausível. Seu título mais conhecido,  Fortnite, começou como um jogo cooperativo para quatro jogadores em 2017, e desde então se transformou em uma plataforma social completa. Inovou o cenário gamer com eventos ao vivo, instituiu sua própria moeda no jogo e contava com 350 milhões de contas em 2020. Com este histórico, mesmo num cenário ocupado por Google, Facebook e Samsung (que também mantêm iniciativas em Realidade Virtual), a Epic Games é a mais promissora empresa para conquistar o grande feito.

Sendo assim, talvez estejamos próximos de romper mais uma fronteira. Desta vez entre o real e o virtual. Através de uma iniciativa que nos aproxima efetivamente de obras da ficção científica, ao mesmo tempo em que nos afasta definitivamente do mundo físico que estamos acostumados a viver.

A Modernidade Líquida de Zygmunt Bauman e a filosofia de Bruce Lee

Zygmunt Bauman nos trouxe a teoria da Modernidade Líquida em 1999. Nos alertou quanto às novas realidades infinitamente mais dinâmicas que a modernidade sólida do passado recente. Trouxe luz sobre a transição de mais uma fronteira, que vem acarretando profundas mudanças em todos os aspectos da vida humana.

Bem antes disso, em uma icônica entrevista concedida em 1971, Bruce Lee proferiu mensagens densas e filosóficas muito próximas de Bauman. Bem mais profundas do que poderia se esperar de um artista marcial, recém lançado como estrela de Hollywood.

Bruce Lee se antecipou às novas complexidades do mundo contemporâneo. Trouxe declarações cujas interpretações podem, até hoje, se aplicar muito além do universo das lutas.

Quando perguntado pelo entrevistador a respeito da definição de seu estilo de combate, Bruce Lee disse:

“Esvazie a mente, não tenha formato… sem contornos, como água. Se você coloca água em uma xícara, se transforma na xícara. Se você coloca água em uma garrafa, se transforma na garrafa. Se coloca em um bule, se transforma no bule. A água pode fluir, a água pode destruir. Seja água, meu amigo.”

Reflexões que nos ajudam a entender e sobreviver num mundo em transformações aceleradas que nos exigem novas formas a cada instante.



Em minha adolescência, enquanto assistia aos filmes e performances de Bruce Lee, nunca imaginaria que suas palavras poderiam provocar reflexões em tantas áreas da vida. Sua filosofia e visões de mundo tocam em questões profundas sobre o indivíduo. Desde o autoconhecimento ao despertar de potências únicas. Nunca imaginaria que suas palavras também poderiam ajudar empresas e organizações em novas estratégias de negócios e no desenvolvimento da adaptabilidade.

Ao mesmo tempo, Bruce Lee também não fazia ideia de que estaríamos todos muito próximos da diluição de velhos limites e do surgimento de novas fronteiras. Que viveríamos em um cenário dinâmico, onde o futuro chega tão rápido que mal há tempo de compreendê-lo.

Mal sabia Bruce Lee que o novo mundo exigiria que abandonássemos nossas formas rígidas e originais em busca da pós-categorização de Bob Johansen. Onde romperíamos as fronteiras da mente através de implantes cranianos da Neuralink. Onde a Epic Games nos colocaria diante de novos metaversos digitais.

Mal sabia Bruce Lee que nossas realidades seriam consideradas líquidas. Que as fronteiras se diluiríam aos nossos olhos. E que a flexibilidade da água poderia ser a chave para a adaptação a um mundo que não para de se transformar.

“Be water, my friend.”

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2 comentários em “Fronteiras Líquidas”

  1. O contexto da sindemia (termo que combina sinergia e pandemia cunhado pelo antropólogo médico americano Merrill Singer na década de 1990) nos colocou o imperativo de “sermos líquido”. Vivenciamos o terror da clausura dentro do maior símbolo de segurança e paz, nossos lares (para alguns; para outros ajuntamento humano).
    As sociedades mundiais tiveram que pós-categorizar as velhas formas de ver o mundo, ser e fazer para sobrepujar a crise: alguns com empenho e esforço para manter a saúde mental, enquanto outros lutando para comer no dia seguinte. Mas todos sob o traço comum da sobrevivência. A reinvenção de nós mesmos significou aprendermos que a segurança individual dependeria da coletiva.
    Tornar-se líquido será a habilidade fundamental para viver e agir no novo modelo híbrido de sociedade.

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